Artigo: Breve trajetória da Organização Anarquista Socialismo Libertário (São Paulo, 2009-2019)

Felipe Corrêa* e Lennon Oliveira Matos**

Reproduzimos artigo publicado em fevereiro de 2022, no livro “Em Movimento: Memórias, Experiências e Performances Coletivas”, organizado por Corina Evelin Demarchi Villalón, Vinícius Fernandes da Silva e Marília Velardi, e publicado pelas Edições EACH (USP). O livro pode ser consultado aqui.

Este capítulo mapeia e discute, brevemente, a trajetória da Organização Anarquista Socialismo Libertário (OASL), de São Paulo, em seus 10 primeiros anos de existência. Ele sintetiza alguns resultados de uma pesquisa mais ampla, que já vem sendo conduzida há certo tempo.

Essa trajetória vincula-se, diretamente, à história do chamado anarquismo especifista1 na América Latina, que encontra na Federação Anarquista Uruguaia sua principal referência. Foi sob sua influência direta que o especifismo desenvolveu-se no Brasil. Primeiro, no Rio Grande do Sul, com a fundação da Federação Anarquista Gaúcha (FAG), em 1995; depois, em diversas regiões do Brasil. Experiências de impacto nacional, como a Organização Socialista Libertária (OSL, 1997-2000), o Fórum do Anarquismo Organizado (FAO, 2002-2012) e a Coordenação Anarquista Brasileira (CAB, 2012- ) constituem parte desta tradição.

Em São Paulo, tal corrente anarquista também se desenvolveu, a partir de meados dos anos 1990, com a experiência da Organização Socialista Libertária – São Paulo (OSL-SP). Esta encabeçou, junto a outras iniciativas por ela impulsionadas, a primeira geração do anarquismo especifista em São Paulo, entre 1996 e 2007. Ela foi seguida por outra experiência organizativa, iniciada no ano seguinte, e que se concretizou em 2009, com a fundação da OASL, protagonista da segunda geração do especifismo paulista.

Em todo o Brasil, e também em São Paulo, a trajetória dessa corrente esteve profundamente vinculada a diferentes movimentos populares. Ela criou e participou de iniciativas sindicais, estudantis, comunitárias, agrárias, e promoveu lutas de conteúdo classista, feminista e antirracista. Nelas imersa, buscou fortalecer um programa, uma linha de trabalho, cujo impacto se fez sentir em distintas partes do Brasil.

Nas próximas páginas – depois de abordar as origens do anarquismo especifista na América Latina e no Brasil, assim como os precursores dessa corrente em São Paulo –, apresentamos e analisamos as concepções e realizações da OASL entre 2009 e 2019. Mesmo levando em conta nossa participação em parte importante dos acontecimentos estudados, esperamos ter produzido um texto honesto, baseado em exposições e reflexões equilibradas das diversas fontes que utilizamos.2

ORIGENS DO ESPECIFISMO E EXPERIÊNCIAS BRASILEIRAS: DA FEDERAÇÃO ANARQUISTA URUGUAIA À COORDENAÇÃO ANARQUISTA BRASILEIRA

Como mencionado, as origens do anarquismo especifista encontram-se na relevante experiência da Federação Anarquista Uruguaia (FAU), fundada em 1956. Durante os anos 1960 e 1970 – num contexto marcado por crise econômica, aumento de influência dos Estados Unidos na região, crescimento das mobilizações populares e endurecimento do governo –, a FAU conformou uma das maiores forças políticas da esquerda uruguaia.

No campo sindical-popular, foi influente na Convención Nacional de Trabajadores (CNT), central sindical que ajudou a fundar em 1964, e na qual atuou, por meio da chamada Tendência, um nível organizativo intermediário entre a FAU e a CNT. Esteve presente em distintas categorias de trabalhadores e protagonizou inúmeros conflitos e greves. Também articulou a Resistencia Obrero Estudantil (ROE), unindo trabalhadores, vizinhos e estudantes num movimento combativo construído pela base. No campo armado, criou e impulsionou a Organización Popular Revolucionária – 33 Orientales (OPR-33), que investiu em sabotagens, expropriações, sequestros e apoio a conflitos sociais.

A FAU ainda desenvolveu uma rica produção no campo teórico. Documentos marcantes, que beberam em clássicos anarquistas como Mikhail Bakunin e Errico Malatesta – assim como em outros autores, mais ou menos vinculados ao campo libertário –, contribuíram com o desenvolvimento do especifismo. Dentre os mais influentes estão: as inúmeras Cartas da FAU, Copei [A luta armada e a tarefa revolucionária] e Huerta Grande [A importância da teoria].

Ao longo dos anos 1970, sofreu uma imensa repressão, tendo grande parte de seus quadros presos, torturados, desaparecidos e mortos, tanto no Uruguai – num processo que foi acentuado depois do golpe de 1973 –, quanto na Argentina – para onde a militância se deslocou e atuou, até o golpe de 1976. (Mechoso, 2009; Rugai, 2012; Alves, 2014)

Com a reabertura do regime, a FAU rearticulou-se no Uruguai entre 1985 e 1986, retomando suas posições anarquistas e estabelecendo uma estratégia para os novos tempos. Daquele momento até o presente, passou a gerir uma sede e uma gráfica próprias e a retomar os trabalhos: sindicais, em diversas categorias; comunitários, nos ateneus e bairros; e estudantis, em escolas e universidades. (Rocha, 1995; Militantes da FAU, 2012/2020)

Além disso, a organização uruguaia também investiu muito na difusão e na articulação do especifismo em outros países da América Latina. O maior fruto desse esforço internacional deu-se, justamente, no Brasil. Desde 1994, as contribuições da FAU nesse sentido foram fundamentais; tanto para a referida fundação da FAG, no ano seguinte, quanto para o surgimento do processo de Construção Anarquista Brasileira, em 1996.

Difundido para várias partes do Brasil por meio do documento “Luta e Organização: pela Construção Anarquista Brasileira”, o projeto da Construção pretendia criar, em cinco anos, instâncias específicas do anarquismo em várias localidades, e subsidiar um projeto futuro de organização anarquista nacional. Intencionava que os anarquistas não apenas se envolvessem na onda de lutas e movimentos populares que emergia em todo país – estimulada, nos anos FHC (1995-2002), pela implementação de um receituário neoliberal, que favorecia as classes dominantes, em detrimento de trabalhadores e pobres –, mas que pudessem orientá-los numa determinada direção. (PCAB, 2015; FAG, 2015, pp. 8-16; Libera, 1995, 1999)

Além do Rio Grande do Sul, tal iniciativa teve impacto considerável em São Paulo, Rio de Janeiro e Pará, e um papel menor em outras regiões. Dentre os maiores frutos desse primeiro período estão: a OSL, projeto de organização anarquista nacional iniciado em 1997, e que, por ter sido construído sem a devida maturação, tentando antecipar o próprio planejamento da Construção, desarticulou-se por volta de 2000; e a Resistência Popular, agrupamento de tendência – nível intermediário entre a organização anarquista e os movimentos populares – fundado em 1999, com a finalidade de aprofundar o trabalho e a inserção social dos anarquistas, e que existe até o presente em diferentes regiões brasileiras. Além de “congressos, conselhos, formação política, discussões orgânicas”, tais organizações levaram a cabo “trabalhos comunitários, estudantis, reciclagem e catação de material reciclável, lutas por terra, por teto e participação em cooperativas”. (OASL/FARJ, 2012)

Num segundo período – marcado pelo governo Lula (2003-2010) e início do governo Dilma, que se caracterizou pela tentativa de manter certos pressupostos neoliberais junto a políticas de conciliação de classe e burocratização dos movimentos populares –, reiniciou-se o processo de organização nacional do anarquismo especifista brasileiro. (LL, 2004a; OSL-SP, 2006)

Para tanto, fundou-se, em 2002, o Fórum do Anarquismo Organizado (FAO). Tratava-se de uma proposta menos ambiciosa, que pretendia agregar anarquistas que tivessem concordância com a necessidade de organização e o trabalho social (criação e participação em movimentos e lutas populares). Antes de tudo, tal proposta pretendia “separar o joio do trigo”, como se dizia em São Paulo. O campo libertário contava, ainda, com frequentes posições antiorganizacionistas, e questionamentos que punham em xeque o classismo e mesmo a atuação em sindicatos ou movimentos sociais.

A proposta do FAO pretendia estimular a construção de um campo de anarquistas ou libertários com acordos mínimos e, a partir disso, visando não repetir equívocos da experiência da OSL, fortalecer paulatina e consistentemente o processo organizativo. Teve certo sucesso nas regiões anteriormente mobilizadas, em especial Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro e Pará; aos poucos, se avançou para Alagoas, Bahia, Goiás e Mato Grosso. (VN, 1997a, OASL/FARJ, 2012)

A trajetória do fórum, entretanto, não se deu sem certos obstáculos. Já em 2004, o Rio de Janeiro, não contava mais com presença do FAO; em 2007, o mesmo se deu em São Paulo. No Rio de Janeiro, a Federação Anarquista do Rio de Janeiro (FARJ) foi impedida de compor o fórum e a União Popular Anarquista (UNIPA) cindiu. Em São Paulo, a OSL-SP encerrou suas atividades. Obstáculos que lograram ser superados somente entre 2008 e 2009, quando as organizações que haviam permanecido no FAO e outras, que vinham sendo criadas por influência da FARJ, conseguiram sanar suas diferenças e unir-se no próprio FAO. (OASL/FARJ, 2012)

Todas essas organizações caminharam juntas para a fundação, em 2012, da Coordenação Anarquista Brasileira (CAB), um aprimoramento orgânico do FAO, que passou de um fórum para uma coordenação, visando, no médio prazo, concretizar aquele projeto de organização nacional anarquista enunciado pela Construção ainda nos anos 1990. (FAG, 2012; FAG, 2015, pp. 42-46; CAB, 2012c) Em termos conjunturais, entre 2012 e 2019, enfrentou não apenas o fim do ciclo petista, mas os efeitos da crise econômica de 2014, o crescimento do lavajatismo e o golpe jurídico-parlamentar-midiático de 2016, e a ascensão da extrema direita, que culminou na eleição de Bolsonaro, em 2018. (CAB, 2012b, 2015, 2018)

Realizações marcantes do FAO e da CAB, em nível político e social, foram: publicações de teoria e conjuntura; articulação orgânica e crescimento no Brasil; refundação da Coordenação Anarquista Latino-Americana (CALA); contribuição com a rede internacional Anarkismo.net; aprofundamento de trabalhos em vários movimentos populares; participação em inúmeras manifestações e protestos de rua, dentre os quais as Jornadas de Junho de 2013; incentivo à criação de tendências Resistência Popular e outras em distintas regiões do país; contribuir com a organização de 13 edições do Encontro Latino Americano de Organizações Populares Autônomas (ELAOPA), para fortalecer um campo afim nos sindicatos e movimentos sociais da América Latina. (Militantes do FAO, 2012/2020; Militantes da CAB, 2012/2020)

PRECURSORES: A ORGANIZAÇÃO SOCIALISTA LIBERTÁRIA DE SÃO PAULO (1996-2007)

Entre 1996 e 2007, São Paulo contou com a primeira geração de anarquistas especifistas, os quais se articularam, especialmente, na Organização Socialista Libertária de São Paulo (OSL-SP), também sob influência da FAU. Publicamente, como em outras localidades, utilizavam mais a expressão “anarquismo organizado” do que “anarquismo especifista”. Nas referidas experiências nacionais (OSL e FAO), essa geração teve presença marcante. Desde a formação do núcleo Vermelho e Negro, e sua articulação com dois outros núcleos, no ABC e em Campinas, para formar a base da OSL-SP, em 1997. Até a formação do Coletivo Luta Libertária, em 2001, com presença na Grande São Paulo, e a retomada da OSL-SP em 2006, estendendo-se para a Baixada Santista. (Militantes da OSL-SP, 2012/2019/2020; LL, 2004b)

Em meados dos anos 1990, o foco dos militantes era o movimento estudantil da Universidade de São Paulo (USP). No boletim Vermelho e Negro, que editavam à época, informavam que tinham atuação “em questões relativas às necessidades de um estudante de baixa renda na USP, mais especificamente problemas como moradia, alimentação, transporte e saúde”. E o faziam por meio da associação de moradores do Conjunto Residencial da USP (CRUSP), que concentrava “alunos oriundos da classe explorada”. (VN, 1997b, 1998)

Aos poucos, o trabalho foi sendo ampliado para os bairros. Além de uma frente estudantil, formou-se uma frente comunitária, bastante potencializada pela formação da Resistência Popular – São Paulo (RP-SP), em 1999, que passou a agregar, além dos especifistas, vários outros militantes. Contou com papel determinante da OSL-SP, cuja militância não apenas propôs e garantiu sua criação, mas também contribuiu de modo definitivo com sua trajetória; encaminhou, por meio dela, todos seus trabalhos sociais. A RP-SP chegou a seis núcleos – USP, Pirituba, Guarulhos (depois divido em dois), Mogi e Poá –, pouco menos de uma centena de membros e editou o Boletim da Resistência Popular. (Militantes da OSL-SP, 2012/2019/2020)

De 2001 a 2007 houve um conjunto de iniciativas importantes protagonizado pelos especifistas paulistas. Em nível político, além do trabalho organizativo, merecem menção: a edição de quatro livros, do boletim Combate Anarquista, do jornal Socialismo Libertário e do documento-programa Socialismo Libertário: um projeto em construção; a gestão do Espaço Buenaventura Durruti, que promoveu muitos eventos e palestras. Em nível social, como parte da RP-SP, esses anarquistas tiveram, além de experiências estudantis (com secundaristas e universitários), comunitárias (em bairros e associações de moradores) e com catadores de material reciclável, outras, que merecem destaque: a atuação em duas ocupações urbanas de grande porte, em Guarulhos e Osasco, e a prática sindical na APEOESP.

Em Guarulhos, os especifistas e outros membros da RP-SP agregaram-se ao processo da ocupação Anita Garilbaldi – ocorrida em 2001, e que chegou a reunir 3 mil famílias –, conformando uma força político-social minoritária e contribuindo com a rotina de tarefas e as lutas do movimento. (MTST, 2013) Em Osasco, na ocupação Carlos Lamarca, de 2002, que chegou a reunir 4 mil famílias, o caso foi diferente. Junto com o Movimento de Luta Popular (MLP), os militantes da RP-SP articularam os preparativos para a ocupação, a entrada no espaço e a massificação do movimento. (Worker, 2002) Disputaram mais igualitariamente os rumos do processo com o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), cuja aliança tática, nas duas ocupações, envolveu conflitos permanentes, graças às distintas (e autoritárias) concepções organizativas deste movimento.

No campo sindical, foi bem importante o trabalho realizado na APEOESP (professores do estado de São Paulo), com a militância integrando a Intersindical, vencendo as eleições na subsede de Santos e garantindo presença influente em outras: Pirituba, São José dos Campos, São Roque, Guarulhos e Poá. (Militantes da OSL-SP, 2012/2019/2020)

A OSL-SP persistiu até 2007, quando encerrou suas atividades; o mesmo aconteceu com a RP-SP. Foram determinantes para tanto o grande desgaste da militância e certo ceticismo frente ao potencial do projeto.

ORGANIZAÇÃO ANARQUISTA SOCIALISMO LIBERTÁRIO: CONCEPÇÕES E REALIZAÇÕES

A primeira década de existência da OASL pode ser exposta em cinco períodos, que se relacionam com os marcos organizativos mais significativos, e, também, com seus fluxos e refluxos. São eles: processo de rearticulação e fundação (2008-2009); construção dos alicerces (2010-2011); aprofundamento e ajuste de organicidade e trabalhos (2012-2014); dificuldades e reorganização (2015-2016); renovação e crescimento político e social (2017-2019).

Ao longo desses anos, a organização vivenciou tanto as consequências da conjuntura nacional – com a passagem do petismo ao lavajatismo, e deste ao protofascismo –, quanto da conjuntura estadual. Embora mais estável, pois esteve sempre sob hegemonia tucana, esta acompanhou em certa medida o processo nacional de radicalização da direita. O governo do estado investiu fortemente no desmonte da educação básica e das universidades públicas; avançou em direção às privatizações e às parcerias público-privadas em setores como saúde e cultura; protagonizou uma repressão brutal, por meio da PM, aos jovens negros e periféricos. (Militantes da FASP/OASL, 2020)

1.) Processo de rearticulação e fundação (2008-2009)

Apenas um ano depois do fim da OSL-SP, o anarquismo especifista voltou a articular-se na capital. Não se tratava exatamente de uma continuação do projeto anterior, pois esta segunda geração surgiu de maneira independente, ainda que contasse com um ex-membro da OSL-SP, e carregasse influências consideráveis de seus aspectos teóricos e práticos (assim como daqueles de Luta Libertária, RP-SP etc.). Traziam, também, influências do Centro de Cultura Social de São Paulo (CCS-SP), que contribuíra, anos antes, com sua aproximação do anarquismo.

Contudo, a maior influência dessa nova geração foi a FARJ. Vinda para São Paulo apresentar seu projeto num encontro contracultural, no início de 2008, essa organização proporcionou as condições para o encontro entre um de seus militantes, que morava em São Paulo, e outros, que à época articulavam o Centro de Cultura Social – Antônio Martinez (CCS-AM). Constituiu-se, a partir desse encontro, o Núcleo Pró-Federação Anarquista de São Paulo (Pró-FASP), outra experiência brasileira no campo de influência da FARJ, que, como dito, permanecia ainda fora do FAO.

Os militantes do Núcleo Pró-FASP esboçaram uma estratégia para a construção da organização anarquista em São Paulo, que consistia num duplo esforço: garantir o crescimento orgânico e aprofundar trabalhos sociais que já vinham sendo feitos, ou mesmo abrir outros, na medida das possibilidades. (Arquivos do Núcleo Pró-FASP, 2008-2009; Militantes da FASP/OASL, 2020; OASL, 2011b)

Para tanto, expuseram a proposta do especifismo em dois amplos Encontros Pró-FASP, que aconteceram, respectivamente, em julho de 2008 e julho de 2009. No primeiro, que reuniu quase 100 pessoas de diferentes cidades do estado, distribuíram aos presentes um texto que explicava:

O modelo que escolhemos adotar é o modelo conhecido na América Latina como “especifismo”. Trazido do Uruguai, o termo “especifismo” refere-se a dois eixos fundamentais que marcam a atuação anarquista: a organização e a “inserção social”. […] A inserção social reforça a ideia de que os anarquistas devem buscar, além destes aspectos de reforço da memória e da promoção da cultura libertária, principalmente, ter um papel relevante na luta dos movimentos sociais e populares. (Núcleo Pró-FASP, 2008a)

Houve três eixos de discussão: exposição da proposta da FARJ3 (feita pela militância da própria organização), inserção social e organicidade. Num quarto, mais prático, encaminhou-se a criação de um grupo de apoio, ao qual se somaram todos os interessados; esse grupo passou a reunir-se periodicamente e, com o devido acompanhamento, subsidiou os ingressos no núcleo da capital. (Núcleo Pró-FASP, 2008b)

No segundo encontro, com presença de 150 pessoas, também houve participação da FARJ, e também da FAG – acontecia, naquele momento, o processo de unificação do especifismo brasileiro. Houve discussões sobre movimentos sociais no campo e na cidade, atuação anarquista no Brasil e no mundo, análise de conjuntura, papel das mulheres e feminismo no anarquismo. E se apresentaram os trabalhos sociais que começavam a se conformar: a gestão do CCS-AM, um espaço comunitário na periferia da zona leste paulistana que organizava atividades culturais no bairro; os contatos estabelecidos no Movimento de Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), regional da Grande São Paulo, e também no movimento indígena; as atividades relativas à questão de gênero, na Agrupação Cultural Feminina Ela Luta. (Núcleo Pró-FASP, 2009b)

Ao longo do segundo semestre de 2009, a militância paulista preparou a fundação da FASP. Além de decisões concernentes à organicidade, buscou aprofundar seus trabalhos, em especial nas Comunas (assentamentos rurais e urbanos) do MST, que pareciam oferecer mais possibilidades. Organizou um evento cultural na Comuna Irmã Alberta (Perus), colaborou com trabalhos de base e ocupações que aconteceram no período, e promoveu, com a FARJ, um encontro entre um movimento de desempregados do Rio de Janeiro e os sem-terra de São Paulo. (Núcleo Pró-FASP, 2009a; Arquivos do Núcleo Pró-FASP, 2008-2009; Bucaneiro Produções, 2008)

Enfim, em 18 de novembro, foi fundada a Federação Anarquista de São Paulo, num evento no espaço Ay Carmela, no centro da capital, com a presença da militância e de alguns convidados. Leu-se um “Manifesto de Fundação”, que afirmava a necessidade de trabalho nos movimentos populares.

– Os movimentos populares que organizam, por suas necessidades, as classes exploradas que sofrem os efeitos da luta de classes nos parecem os únicos meios para operar uma transformação revolucionária da sociedade visando à construção do socialismo.

– Assim, nossos esforços devem buscar construir e participar destes movimentos.

– Neste processo de construção e participação, estar nos movimentos individualmente e desorganizados não é suficiente. É fundamental que estejamos lá com um projeto programático e com a devida organização.

– Devemos nos preocupar com a relação entre a organização anarquista e os movimentos populares para não incorrermos em conhecidos equívocos: nem estar atrás dos movimentos, “a reboque” deles, nem à frente, querendo exercer função de partido de vanguarda.

– Para isso, não é suficiente a autoidentificação como anarquista, mas a identificação com um projeto determinado. Precisamos de um modelo de organização que dê conta dos objetivos que nos propomos a atingir.

– Estas premissas apontam para a necessidade de criarmos uma organização específica anarquista que, com unidades no campo da teoria e da prática, poderá agrupar militantes responsáveis, que trabalhem com estratégia, dando a devida coesão ao nosso trabalho. (FASP, 2009a)

Ainda durante o evento de fundação, apresentou-se um vídeo, em que os especifistas paulistanos relataram os acúmulos teóricos e práticos adquiridos desde o início do processo, e leram-se declarações de solidariedade de organizações e indivíduos. (FASP, 2009a; OASL, 2011b) Publicou-se, naquele momento, um texto intitulado “As Alianças e a Necessidade do Programa e da Estratégia”, com os marcos que norteariam a perspectiva estratégica e o campo das alianças da organização. (FASP, 2009b)

2.) Construção dos alicerces (2010-2011)

Os anos que vão da fundação da FASP até o final de 2011 serviram para formar os alicerces da OASL. Foi o momento de continuar incorporando novos militantes no núcleo da capital, iniciar diálogos com a Baixada Santista e o Alto Tietê, e seguir nas linhas anteriormente estabelecidas. Foi também o período de criar frentes para trabalho social e de discutir e deliberar a troca do nome da FASP. A partir de fevereiro de 2011, em função de um conflito com um ex-membro – que, sem consentimento dos demais, registrou a federação em cartório em seu nome –, a FASP passou a chamar-se Organização Anarquista Socialismo Libertário. (Militantes da FASP/OASL, 2020; OASL, 2011b)

Ainda em 2011, a OASL aprovou sua Declaração de Princípios, que desenvolve as formulações que vinham sendo elaboradas desde o período Pró-FASP, e expõe publicamente sua concepção de anarquismo e seu projeto organizativo. (OASL, 2011a) Nessa declaração, o anarquismo é entendido como “uma ideologia, um tipo de socialismo revolucionário que envolve um conjunto de aspirações, desejos e valores vinculados a uma prática política”. O anarquismo e seu projeto são expostos, então, por meio de um conjunto de “princípios político-ideológicos” e “princípios estratégicos e organizacionais”.

Em relação aos primeiros, a OASL enfatiza vincular-se a uma ética anarquista, apoiada em um conjunto de valores, que acompanham suas críticas e propostas construtivas. Critica todas as formas de dominação – que inclui a exploração do trabalho, a dominação burocrática, a coerção física, a alienação cultural, o racismo, o patriarcado, etc. – e propõe uma prática política classista, elaborada desde uma noção estratégica, com os meios estando subordinados aos fins. Propõe uma linha de atuação revolucionária, que encontre em certos princípios o caminho de luta: apoio mútuo, solidariedade, ação direta, independência de classe. Seu objetivo é a transformação revolucionária e a construção do poder popular – um projeto que concilia liberdade e igualdade, forjando um socialismo em todos os níveis, baseado na autogestão, no federalismo e no internacionalismo.

Sobre os segundos, a OASL destaca apoiar-se num projeto organizacionista, que pretende articular os anarquistas tanto no nível político-ideológico (da organização política anarquista) quanto no nível social-popular (dos sindicatos, movimentos sociais etc.). Esses níveis são entendidos como complementares, e a função do primeiro é atuar como minoria ativa (fermento, motor) dentro do segundo, o qual deve ser o grande protagonista das mudanças e transformações. A organização anarquista possui alguns critérios organizativos: opera com unidade teórica e ideológica, unidade estratégica e tática e responsabilidade coletiva, forjando linhas comuns de pensamento e ação, e estimulando o compromisso e a autodisciplina.

Ela entende ser imprescindível criar e participar de movimentos populares, promovendo dentro deles um programa, uma metodologia que, além de conciliar a luta por reformas e o projeto revolucionário, implica:

a construção de movimentos fortes em torno das necessidades concretas, com a possibilidade de participação de militantes com diferentes concepções ideológicas e religiosas; a presença ampla de diversos setores das classes oprimidas; lutas que sejam organizadas pela base, com independência de classe, autonomia e combatividade, e que se utilizem da ação direta e das formas de democracia direta (federalismo e autogestão), promovendo, ao mesmo tempo, as lutas parciais e os objetivos revolucionários, e articulando-se em organizações populares amplas. (OASL, 2011a)

Contudo, o maior marco em termos político-ideológicos nesse período foi o investimento nas relações e articulações nacionais e internacionais. No Brasil, a OASL aprofundou não apenas as relações com a FARJ, mas também com o FAO e suas organizações. Nas relações internacionais, a organização: recebeu membros da Zabalaza Anarchist Communist Front (ZACF), da África do Sul; enviou delegação para o aniversário de 55 anos da FAU, no Uruguai; compôs a rede Anarkismo.net. A OASL ainda organizou e sediou, em 2011, a planária anual do FAO, a qual aprovou seu ingresso, e as Jornadas Anarquistas, que contaram com a presença de delegações de organizações anarquistas brasileiras, uruguaias, argentinas e chilenas. (Arquivos da FASP, 2009-2011; Arquivos da OASL, 2011-2019; FAU/FAO, 2011)

Em termos de atividades no campo popular e trabalho social, houve diálogo e articulações com o movimento indígena, catadores de material reciclável do centro, e movimentos comunitários da zona leste. Assim como o envolvimento nos movimentos estudantil, na USP, e sindical, nos bancários. Mas, nesse campo, o que mais se sobressaiu naqueles anos foi o trabalho com o MST. Por mais que o movimento possuísse diferenças programáticas e organizativas com os anarquistas, os militantes da OASL encontraram confiança e receptividade, além de um setor minoritário de oposição que se conformava nacionalmente, e que tinha presença considerável na Grande São Paulo e em seu entorno. Esse “setor do poder popular”, como era chamado, no contraponto ao “setor da estratégia democrático-popular” majoritário, apesar das diferenças marcantes, apresentava também muitas similaridades com as mencionadas linhas programáticas e metodológicas da OASL, e foi avaliado como um potencial polo aglutinador para fazer uma disputa no movimento.

No MST, a militância da OASL e concentrou-se na frente de massas e nos setores de produção e educação; participou de instâncias de coordenação do movimento e de diversas lutas. Ainda, organizou na cidade feiras e vendas de cestas com produtos dos assentamentos; na Comuna Irmã Alberta, reformou o barracão social e encabeçou um projeto de educação popular de jovens e adultos. (Arquivos da FASP, 2009-2011; Arquivos da OASL, 2011-2019; Militantes da FASP/OASL, 2020)

Naquele momento, todos os trabalhos sociais da OASL eram realizados por meio da Organização Popular Aymberê (OPA), agrupamento de tendência multisetorial, fundado em outubro de 2009, que agregava toda a militância da OASL e um conjunto de outros membros (anarquistas e não anarquistas) que tinham acordo em atuar nos movimentos populares a partir de certos princípios práticos: ação direta, solidariedade das classes oprimidas, autonomia, democracia direta e protagonismo popular. Militantes da OPA tiveram presença tanto no MST quanto em outros movimentos em que a OASL teve contato e atuação.

Notável realização da OPA foi a organização do IX ELAOPA, que aconteceu, em janeiro de 2011, no Centro de Formação Campo Cidade, do MST (Jarinu). Durante três dias, mais de 400 inscritos de vários países discutiram a conjuntura latino-americana, compartilharam experiências e buscaram acordos para sua atuação social-popular por meio de reuniões por comissões e grupos de trabalho. (OPA, 2011; Arquivos da OPA, 2009-2012; Oliveira, 2011)

3.) Aprofundamento e ajuste de organicidade e trabalhos (2012-2014)

Entre 2012 e 2014, a OASL vivenciou um momento de maior estabilidade, com implicações nas secretarias (organização, propaganda/comunicação, finanças/infra, formação e relações) e nos trabalhos sociais. A partir de 2012, implantou o nucleamento, formando dois núcleos na capital e integrando um terceiro em Marília, que também contava com presença em Franca. Nos núcleos da capital, ingressaram militantes de outras regiões da Grande São Paulo; continuaram os diálogos com a Baixada Santista e iniciaram-se contatos em Bauru. Em 2013, aprovou-se uma Carta Orgânica, que passou a regular o funcionamento interno da organização.

Nesse período, a OASL também realizou diversas atividades internas de formação política e elaborou um Programa Mínimo de Formação. Participou em todos os anos da Feira Anarquista de São Paulo e promoveu atividades públicas de propaganda – como aquelas ocorridas no CCS-SP, em 2013 e 2014 –, além de dois amplos cursos sobre anarquismo. (Arquivos da OASL, 2011-2019; Militantes da FASP/OASL, 2020)

A organização deu continuidade ao aprofundamento de relações nacionais e internacionais. Somente em 2012, por exemplo, esteve presente em seminários regionais de formação política, enviou delegações para eventos no Brasil, e mesmo no exterior – caso dos Encontros Internacionais Anarquistas, na Suíça. Ainda contribuiu ativamente com a construção da CAB, mandando delegagos para o congresso de fundação (I CONCAB) no Rio de Janeiro, e trabalhou na edição do primeiro número da revista Socialismo Libertário. (FAO, 2012; CAZP, 2012; CAB, 2012a; FARJ, 2012)

No terreno social-popular, os anos em questão foram marcados por ajustes. Depois de analisar a conjuntura, as possibilidades das atividades empreendidas, e de sua própria força militante, a OASL decidiu reorganizar os trabalhos. Continuou optando, na maior parte dos casos, pela participação em movimentos existentes, consciente de que a maior dificuldade para influenciá-los era acompanhada de maior facilidade no processo de construção organizativa e massificação.

Os militantes especifistas desvincularam-se do movimento indígena, das atividades comunitárias da zona leste da capital e dos catadores do centro. Continuaram com alguma força no Movimento Passe Livre (MPL) e iniciaram outros trabalhos via frente comunitária na Zona Sul da capital; houve contatos no Jardim Ângela e envolvimento em lutas e atividades culturais da Rede Extremo Sul, na região do Grajaú. A OPA, que continuou a operar ao longo de 2012, também foi reavaliada. Mesmo tendo cumprido um papel relevante, vinha perdendo sua função de potencializar os trabalhos sociais; de modo que suas atividades se reduziram a um mínimo e, em 2013, praticamente se encarraram. (Arquivos da OASL, 2011-2019; Militantes da FASP/OASL, 2020; Arquivos da OPA, 2009-2012)

Por outro lado, as frentes sindical, estudantil e agrária/MST contaram com os maiores avanços nesse período.

No campo sindical, amadurecia uma leitura de que os sindicatos, por sua origem e trajetória, são instrumentos de luta da classe trabalhadora. Mas que, no Brasil, seu atrelamento ao Estado, assim como os processos mais recentes de burocratização e instrumentalização partidária constituíam enormes entraves. Não se tratava, para a militância da OASL, de uma “crise de direção”, que poderia ser resolvida pela disputa de aparelhos, mas da incapacidade de mobilizar massivamente os trabalhadores, e dar conta das atuais relações de trabalho e demandas da classe trabalhadora. A saída parecia estar no fortalecimento, pela base, das entidades sindicais, e na reconstrução, junto a outras forças, do sindicalismo revolucionário; um movimento que pudesse, ao mesmo tempo, constituir uma ferramenta de resistência dos trabalhadores, e que tivesse condições de avançar para um projeto transformador de poder popular. (Militantes da FASP/OASL, 2020)

No estado de São Paulo, essa linha começou a ser promovida na APEOESP, que contava então com presença da OASL nas subsedes de Cotia e Marília. Com um trabalho de base regular, esses anarquistas mobilizaram os professores, estimularam sua aproximação do sindicato e tentaram criar um campo de influência, com capacidade de disputar espaço na entidade. Foi nesse sentido que propuseram uma tese, no XXIV Congresso, de 2013, intitulada “Mudar o Sindicato é Preciso”, em que faziam quatro propostas: 1.) Reforçar a “democracia de base nas decisões”; 2.) Destinar “10% da arrecadação para formação sindical”; 3.) Estimular a “comunicação com alunos, funcionários e pais”; 4.) Promover formas de “orçamento participativo” no sindicato. (OASL, 2013a) Foi essa mesma linha que permitiu a aproximação com alguns metroviários paulistanos, diretamente envolvidos na importante greve de 2014, que, depois, ingressaram na organização. (Arquivos da OASL, 2011-2019)

No campo estudantil, as atividades cresceram bastante na UNESP de Marília e de Franca, e na USP da capital. Ao longo de 2012, a OASL contribuiu, diretamente, com a preparação e a linha política de três Encontros de Estudantes Libertários (EEL). Na UNESP, o que mais se sobressaiu foi o amplo ciclo de lutas iniciado em 2012, no qual intervieram os estudantes da OASL por meio de coletivos locais. Naquele ano, envolveram-se na ocupação da seção de comunicação por reivindicações relativas ao restaurante universitário. Em 2013, participaram ativamente da histórica greve contra o PIMESP (Projeto de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Publico Paulista) e os cortes de bolsas. Com mais de 20 campi paralisados, ocupações de direções, reitorias e bloqueios de estradas, a greve terminou vitoriosa. Em 2014, estiveram nas ocupações por moradia estudantil e compuseram da greve que mobilizou estudantes, professores e funcionários. (OASL, 2013b; Militantes da FASP/OASL, 2020)

Na USP, os estudantes da OASL compuseram a ampla greve de 2013, que reivindicava maior democracia na universidade. Articulados na tendência estudantil libertária Rizoma, e inspirados pelas conquistas da UNESP, enfatizaram as pautas classistas, de maior acesso à universidade e de ampliação das políticas de permanência para estudantes de baixa renda. Ambos os processos, na UNESP e na USP, contribuíram diretamente com o processo de articulação, a partir de 2014, da Resistência Popular Estudantil (RP-E), tanto em Marília quanto em São Paulo. A qual propunha constituir uma alternativa às entidades autoritárias, governistas e autonomistas. (Arquivos da OASL, 2011-2019; Militantes da FASP/OASL, 2020)

O trabalho com o MST também se desenvolveu significativamente nesses anos. Já em 2012, a militância da OASL garantiu maior inserção social no movimento, por meio dos setores de produção e juventude, e das atividades na Comuna Dom Pedro Casaldáliga (Cajamar). Na produção, contribuiu com a reconstrução da cooperativa deste assentamento e com a distribuição dos produtos de diferentes comunas na capital, por meio de uma feira semanal que estruturou na USP e da venda de cestas. No Dom Pedro, impulsionou a criação de um coletivo de juventude, que promoveu mobilizações por meio de atividades culturais e de confraternizações.

Contudo, naquele período, a OASL já avaliava que havia um enfraquecimento, em nível nacional e estadual, do tal “setor do poder popular”, graças à mudança de posição ou a saída de dirigentes e coordenadores.4 Ainda assim, ele continuava existindo e, justamente para tentar fortalecê-lo, a OASL aceitou a indicação de dois de seus membros para compor as direções regionais de formação política e produção. Junto a outros dirigentes, coordenadores e militantes de base, anarquistas e não anarquistas, todos alinhados ao projeto de poder popular do MST, chegaram a conformar a maior força política da regional e assim conseguiram manter-se por algum tempo. (Arquivos da OASL, 2011-2019; Militantes da FASP/OASL, 2020)

A militância da OASL e seus aliados lograram, não sem imensas dificuldades, fortalecer organismos de base nos assentamentos, promover maior participação dos sem terra nos espaços e nas decisões, além de reinserir a regional da Grande São Paulo num calendário de lutas mais combativas. A mais relevante delas foi a ocupação Padre João Carlos Pacchin, ocorrida em Itapevi, no final de agosto de 2013, que contabilizou 350 famílias. Os militantes da OASL não apenas defenderam na regional, com certo desgaste, que a ocupação fosse levada a cabo, mas contribuíram determinantemente com a preparação das famílias, a entrada no espaço e a coordenação de seu funcionamento cotidiano, ao longo dos seus 10 meses de existência. Despejadas em 2014, as famílias ainda tentaram promover uma nova ocupação, mas que foi novamente despejada, impondo uma derrota tanto àquela comuna urbana, quanto ao próprio “setor do poder popular” na regional. (MST, 2013, 2014; Arquivos da OASL, 2011-2019)

Enfim, cumpre mencionar outro marco desses anos: as manifestações de 2013 contra o aumento do transporte público, que se massificaram enormemente em São Paulo e se transformaram nas conhecidas Jornadas de Junho. Os especifistas envolveram-se ativamente na construção dos atos de rua, tanto com os sindicatos e movimentos sociais em que tinham presença, quanto com o suporte ao MPL. Nas ruas, reforçaram as reivindicações pela redução do preço da tarifa e contribuíram com o crescimento e a radicalização dos protestos, enfrentando a repressão e o crescimento da direita. (OASL, 2013b; Militantes da FASP/OASL, 2020)

4.) Dificuldades e reorganização (2015-2016)

Entre 2015 e 2016, a OASL passou por dificuldades internas e teve de se reorganizar. Tais dificuldades começaram a manifestar-se mais evidentemente nos fins de 2014 e se acentuaram no início de 2015; foram ocasionadas por problemas que duraram menos de seis meses, mas que tiveram efeitos mais duradouros. Elas podem ser explicadas por um conjunto de fatores.

Um deles foi uma baixa considerável no número de militantes, resultado de pedidos de desligamento, mudanças de estado (por diferentes motivos) e afastamentos temporários de membros. Fato que teve impacto direto no funcionamento interno da organização e nos trabalhos sociais. A frente sindical foi a mais prejudicada, mas a estudantil e a agrária/MST também sofreram impactos negativos.

Ademais, o processo da ocupação Padre João Carlos também trouxe problemas. Tanto pelo desgaste, quanto pela falta de respaldo de parte do movimento, inclusive na ocasião e depois dos despejos. Algo que acirrou os conflitos na regional, especialmente entre a militância anarquista e o “setor da estratégia democrático-popular”. Algum tempo depois, isso levou a um caloroso debate na OASL, que resultou na decisão de sair da direção e reduzir consideravelmente os esforços no movimento. Era o maior e mais antigo trabalho da organização, e isso sem dúvida teve consequências. (Arquivos da OASL, 2011-2019; Militantes da FASP/OASL, 2020)

Essa baixa, que também implicara o afastamento de militantes mais experientes, e a necessidade de solucionar problemas que iam aparecendo motivaram decisões equivocadas. Dentre elas, a abreviação do processo de ingresso e a falta de cuidado com o acompanhamento de novos membros, que permitiram a entrada de pessoas sem o perfil militante da OASL. Além disso, um caso explícito de machismo não recebeu o tratamento devido e teve impactos negativos em toda a organização. Ambiente esse que contribuiu para que se acirrassem os ânimos e divergências políticas e pessoais viessem à tona. Algumas maneiras encontradas para tentar solucionar os problemas que se agravavam certamente não foram as mais adequadas. A CAB comprometeu-se a ajudar na solução dos problemas, e designou a FARJ para um suporte direto.

O I Congresso da OASL, que havia tido uma primeira sessão bastante conturbada ao final de 2014, estendeu-se para dar conta da superação das dificuldades; de 2015 ao início de 2017, foram realizadas outras cinco sessões. O número de núcleos foi reduzido para garantir maior homogeneidade no tratamento dos três temas então priorizados: trabalhos sociais, processo de ingresso, questão de gênero e conduta. Em relação a eles, foi necessário: atualizar a leitura de conjuntura e analisar novamente os trabalhos em curso, encontrando formas mais adequadas de organizá-los e potencializá-los; rediscutir a forma que vinham acontecendo as entradas de novos militantes, solucionando os problemas e aprimorando significativamente o processo; aprofundar os debates e a formação política sobre gênero, aproximando-se mais das instâncias regionais e nacionais, e desenvolver procedimentos para o tratamentos de comportamentos inadequados. (Arquivos da OASL, 2011-2019; Militantes da FASP/OASL, 2020)

Para tanto, a OASL buscou referências em outras organizações da CAB. Encaminhou posições sobre esses temas e elaborou um novo planejamento estratégico. Em relação aos trabalhos sociais, as linhas estabelecidas para os necessários ajustes foram as seguintes. No campo sindical, se reconstruiria a frente que havia se enfraquecido, impulsionando a construção de uma Resistência Popular Sindical (RP-S). No campo estudantil, se daria continuidade ao desenvolvimento da RP-E. No campo comunitário, se tentaria criar um Movimento de Organização de Base (MOB), inspirado na iniciativa homônima do Rio de Janeiro e do Paraná, e se fortaleceria outras iniciativas. Iniciaram-se, então, as ações nessa direção.

Mesmo em meio a essas dificuldades, algumas realizações do período tiveram destaque. Na capital, a militância da OASL teve alguma contribuição no grande processo de ocupação de escolas levado a cabo na passagem de 2015 para 2016. Ela também foi determinante na criação do Comitê de Solidariedade à Luta do Povo Curdo, iniciativa de solidariedade internacionalista à Revolução de Rojava, iniciada em 2012 no norte da Síria, e que assumira contornos libertários. Entre 2015 e 2016, o comitê fez muitas palestras sobre o tema – em centros sociais, escolas ocupadas, bairros e cursinhos populares – e contribuiu com a edição de dois livros, com traduções e publicações de material de propaganda, dentro e fora da internet. Aos poucos, os especifistas do comitê aproximaram suas atividades das frentes da OASL, utilizando o conteúdo da luta curda como elemento de trabalho de base.

Em Marília, a militância não só impulsionou um grupo de estudos sobre pedagogia libertária, uma banca de venda de livros e uma biblioteca social, mas teve incidência na greve de 2016 da UNESP. Novamente mobilizando estudantes, professores e funcionários, a greve teve diferentes reivindicações, dentre elas os ajustes salariais. Os estudantes da OASL tentaram fortalecer a construção de base da greve e, novamente, enfatizaram a questão da permanência estudantil. Mas sem grande sucesso; a greve terminou sem conquistas. (Arquivos da OASL, 2011-2019; Militantes da FASP/OASL, 2020)

5.) Renovação e crescimento político e social (2017-2019)

Ao longo desse período, a OASL conseguiu sanar seus problemas, superar as dificuldades dos anos anteriores e voltar a crescer em quantidade e qualidade. Retomou também sua participação e contribuições na CAB. Com um processo de ingresso bem estabelecido e funcionando adequadamente, as aproximações de novos membros foram acompanhadas de maneira devida, e a expansão ocorreu respeitando os critérios de perfil, formação e trabalho.

Foi também fundamental um fortalecimento do secretariado. A secretaria de organização encabeçou de maneira mais apropriada toda a articulação interna; a secretaria de propaganda/comunicação fortaleceu-se e passou a produzir mais ativamente e a atualizar com mais constância site e redes sociais; a secretaria de formação continuou a investir na questão de gênero e contribuiu para o aprofundamento das linhas de atuação nesse campo; investiu, também, no aprofundamento de outros temas, dentre os quais raça e etnia. (Arquivos da OASL, 2011-2019; Militantes da FASP/OASL, 2020)

Conforme as dificuldades foram sendo solucionadas, a capital voltou a se nuclear e o interior se reestruturou. Então, foi possível retomar de modo mais devido as relações com outras regiões do estado (Araraquara, Baixada Santista, Bauru e Campinas) e aprofundá-las. Algo que se intensificou bastante em 2019 e culminou em 2020, quando a OASL chegou a seis núcleos: três na capital (centro, norte e oeste), Marília (com militância também em Araraquara), Baixada Santista (com militância em Santos, São Vicente, Cubatão e Peruíbe) e Bauru.

Contribuíram para tanto as participações e atividades que a organização teve nas Feiras Anarquistas de 2017, 2018 e 2019, assim como em iniciativas e eventos articulados na capital e em outras cidades. Exemplos disso foram: as presenças constantes nos atos do Primeiro de Maio com material de propaganda; as atividades promovidas em Marília, em 2018, sobre a experiência histórica da makhnovitchina (Revolução Ucraniana, 1919-1921) e sobre as mulheres anarquistas durante a Primeira República brasileira; os eventos organizados na capital, em 2019, sobre as revoltas populares na América Latina (no Sindicato dos Jornalistas) e sobre a questão da militância das mulheres no anarquismo (no CCS-SP). As atividades do Grupo de Estudos Poder Popular, na Baixada Santista, que contribuíram com a formação do núcleo da OASL na região, também foi relevante. (Arquivos da OASL, 2011-2019; Militantes da FASP/OASL, 2020)

No terreno social, a RP-S conseguiu consolidar-se e adquirir incidência em diferentes categorias. Estimulada por duas visitas, em 2015 e 2017, da Confederación General del Trabajo (CGT) espanhola – maior central sindicalista revolucionária do mundo, com 100 mil membros –, a RP-S formulou uma Base de Acordo em 2016 propondo “o resgate de um discurso, mas, principalmente, a disposição para novas práticas, que apontem para a reconstrução do sindicalismo combativo e classista”. Práticas que se apoiassem na independência e na solidariedade de classe, na ação direta e na democracia de base, e que pudessem articular a mobilização por local de trabalho e moradia no sentido de construir um projeto de poder popular. (RPS-SP, 2016)

A partir de 2017, os militantes sindicais da OASL passaram a difundir a proposta e agregar vários outros. Partiram de uma presença em apenas duas categorias para chegar, em 2018 e 2019 na capital, a três núcleos, com participação em diversos sindicatos: metroviários, professores municipais (SINPEEM), professores estaduais (APEOESP), professores particulares (SINPRO e outros agrupamentos), trabalhadores do SESC, funcionários da USP (SINTUSP), jornalistas (sindicato e FENAJ) e trabalhadores da saúde; experiências de menor envergadura aconteceram nos ferroviários, trabalhadores da cultura, da assistência social, autônomos e desempregados. Em Marília, aos poucos o trabalho sindical foi sendo retomado. Nessas categorias, os especifistas e seus aliados não apenas realizaram trabalhos de base e de mobilização, mas articularam de greves, atos de rua e outras atividades; em alguns casos, tornaram-se dirigentes sindicais de suas categorias e sindicatos. Nos anos em questão, grande parte dessa militância da RP-S ingressou na OASL e buscou-se estreitar laços com outras RPs e tendências afins do Brasil. (Arquivos da OASL, 2011-2019)

A RP-E também conseguiu se desenvolver, ainda que de maneira mais modesta. Em Marília, publicou um manifesto em 2018, no qual criticou a formação elitista e racista da sociedade brasileira, e afirmou que “luta do Movimento Estudantil deve ser, principalmente, em dois sentidos: o acesso à educação e a permanência estudantil”. Sustou ser fundamental “defender uma universidade de fato pública, na qual a população pobre tenha acesso, gratuita a todas e todos, e de qualidade, no ensino, pesquisa e extensão”; e também construir um “conhecimento crítico” que fosse socializado com trabalhadores. (RPE-Marília, 2018)

Com participação determinante dos especifistas, ela encampou, ao longo de 2018, uma luta contra a repressão (interditos proibitórios e sindicâncias) da UNESP aos estudantes que haviam se envolvido em mobilizações na universidade. E abriu diálogos com a militância de Araraquara que, no ano seguinte, já contava com presença da RP-E. Em São Paulo, houve esforços no sentido de consolidar a RP-E; além da alguma presença na USP (incluindo USP Leste), estabeleceram-se interlocuções na UNIFESP de Guarulhos e na UFABC. Para essa construção, a militância estudantil da OASL formulou linhas estratégicas visando fortalecer um projeto de poder popular via frente estudantil. (Arquivos da OASL, 2011-2019)

Na frente comunitária, contudo, as atividades não se desenrolaram exatamente conforme o planejado. De 2016 em diante, a OASL investiu na criação de três núcleos de um Pró-MOB: no ABC, no Jardim Ângela e em Mogi das Cruzes. Mas ao longo de 2017 houve problemas com estes dois últimos, que terminaram não se desenvolvendo no sentido desejado. Continuaram suas atividades, mas sem presença da militância da OASL. A presença no pró-núcleo do ABC persistiu durante 2017 e 2018, com a realização de atividades em São Bernardo do Campo e Ribeirão Pires, as quais incluíram a inauguração e a gestão de um cursinho pré-vestibular, que permaneceu funcionando ao longo de 2019.

Mas, com o enfraquecimento do Pró-MOB, outros trabalhos assumiram protagonismo nessa frente. Além de esforços empreendidos no debate sobre a criação ou não de uma tendência, e da presença em ocupações urbanas no centro da capital e na Marcha da Maconha, destacaram-se nos anos analisados três contribuições: no Fórum Popular de Saúde, na Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio e no movimento Mandela Free.

No Fórum, os especifistas estiveram presentes, entre 2017 e 2019, nas regiões norte e central de São Paulo, encampando lutas em defesa da saúde pública em geral e do SUS em particular. Ao lado de trabalhadores e usuários do SUS, mobilizaram-se na Grande São Paulo contra o fechamento do Hospital da UNIFESP, pela manutenção do Hospital Sorocabana, e na defesa dos hospitais de Taipas e da Lapa. Na Rede, a partir de 2018, os membros da OASL atuaram em diferentes regiões periféricas da capital – nas zonas norte, sul e em Guarulhos – no enfrentamento das violações de direitos humanos, em especial a violência policial contra a juventude negra e periférica. Contribuíram com a denúncia e o acompanhamento de casos, e com a elaboração de estratégias de proteção, assistência e autodefesa; articularam trabalhadores e movimentos locais da região, e investiram em iniciativas locais como horta comunitária e eventos culturais. No Mandela, em Guarulhos (principalmente na favela São Rafael), também a partir de 2018, apostaram na mobilização da juventude em torno de pautas vinculadas à cultura, educação, esporte, moradia e transporte (MPL Guarulhos). (Arquivos da OASL, 2011-2019; Militantes da FASP/OASL, 2020; OASL, 2019)

O ano de 2018 marcou, ademais, o encerramento mais definitivo dos trabalhos agrários. Não apenas dos esforços remanescentes no MST, que perduraram depois dos problemas de 2015, mas ainda do projeto Horta di Gueto, de Taboão da Serra, cuja prática vinha se dando com a construção de hortas comunitárias, cooperativas, e em diferentes casos subsidiando outros trabalhos comunitários da organização.

Enfim, os anos 2017-2019 proporcionaram condições para a participação mais ampla da OASL em greves, manifestações e protestos de rua.

Foram marcos, nesse sentido, as diversas manifestações feministas, que contaram com participação das mulheres especifistas. Estas intervieram – em marchas e atos massivos do 8 de Março, manifestações pela descriminalização do abordo, contra o machismo e o fascismo – com cartazes, lambe-lambes e panfletos, buscando formar um campo feminista libertário. Paralelamente, organizaram treinamentos de autodefesa feminina. Esse processo apoiou-se numa linha de gênero, formulada no período anterior, e contribuiu para seu aprimoramento. Tal linha, além de criticar o feminismo liberal e radical (especialmente suas vertentes transfóbicas), e de reconhecer a relação entre gênero, raça e classe, enfatizava a necessidade de construir um feminismo classista, antirracista, anticapitalista, não excludente e com perspectiva revolucionária e de ruptura com Estado. Um feminismo que pudesse promover a autodefesa como forma de empoderamento da mulher e lutar pela ampliação de direitos por meio da luta popular e da ação direta.

Também foram importantes as greves e manifestações ocorridas nesses anos, que levaram às ruas enormes contingentes de pessoas contra os aumentos nos preços do transporte público, contra as reformas trabalhista e da previdência, contra os cortes de orçamento e bolsas na educação pública, assim como as mobilizações antifascistas. Em todas elas, em diferentes cidades, os especifistas marcaram presença. Ponto alto deu-se em meados de 2019, quando membros da OASL, das tendências e dos movimentos em que ela tinha atuação, não apenas estiveram nos atos de rua, não raro em blocos libertários construídos em aliança com outros setores, mas também em piquetes, trancaços, panfletagens e outras ações de capilaridade significativa. Procuraram estabelecer diálogos permanentes com setores mais radicalizados de estudantes e trabalhadores, a fim de construir espaços combativos de ação. E contribuíram bastante com o estabelecimento de relações e alianças táticas com a juventude libertária e seus grupos. (Arquivos da OASL, 2011-2019; Militantes da FASP/OASL, 2020; OASL, 2019)

BALANÇO E APONTAMENTOS CONCLUSIVOS

A partir de tudo que foi discutido, é possível fazer um balanço da trajetória da OASL e certos apontamentos conclusivos. Tais reflexões também contemplam algumas avaliações coletivas da própria militância da organização. (Arquivos da OASL, 2011-2019; Militantes da FASP/OASL, 2020)

Em 2020, completam-se 25 anos de anarquismo especifista no Brasil. Em São Paulo, desde que a Construção foi endossada, em 1996, houve inúmeros avanços, e contribuições destacadas ao processo nacional. Por mais que existissem, no estado, outras experiências anarquistas, a corrente especifista foi a primeira a estabelecer uma ruptura com aquilo que estava colocado no campo anarquista, e a propor enfaticamente uma recuperação do espaço perdido nos sindicatos, movimentos sociais e outras manifestações da luta de classes em São Paulo. Isso, obviamente, implicou conflitos com velhos e novos anarquistas, e também com parte destacada do campo libertário mais geral.

Nessa tentativa de retomar o vetor social do anarquismo, os especifistas tiveram imensas dificuldades. Principalmente pelo fato de não haver, no estado, e mesmo no país, uma geração precedente, de antigos militantes, de concepções semelhantes, que pudesse oferecer a eles, em sua imensa maioria jovens, a devida orientação. De modo que esse acompanhamento teve de vir do Uruguai, não sem as dificuldades oriundas da distância e das diferenças de idioma e de contexto.

No Brasil em geral, e em São Paulo em particular, não foi simples para os anarquistas passar a se dedicar aos trabalhos populares sem grandes referências, e nem mesmo respeito ou consideração por parte de outras forças políticas adversárias. Levou um certo tempo para que esses anarquistas conseguissem encontrar suas próprias posições em termos de desenvolvimento teórico, estilo militante e prática política. Não foi raro, inclusive em São Paulo, a importação de elementos teóricos de outras correntes, que não eram apenas inadequadas aos pressupostos anarquistas, mas que tiveram implicações consideráveis em termos de prática política. Não foi simples, ao mesmo tempo, encontrar um termo entre o reboquismo (seguir acriticamente as linhas dos movimentos) e o dirigismo vanguardista.

Tanto a primeira, quanto a segunda geração do especifismo em São Paulo realizaram muito mais trabalho do que inserção social. (FARJ, 2008, p. 162) Ou seja, foi mais comum desenvolverem atividades nos movimentos populares, do que massificá-los e influenciá-los determinantemente. Em comparação à quantidade de trabalhos sociais levados a cabo, as experiências de inserção foram bem mais restritas. Isso se complicou pelo fato de a segunda geração do especifismo paulista ter se desenvolvido com poucos contatos com a primeira, de modo que terminou reproduzindo equívocos que poderiam ter sido evitados. Em alguns casos, isso também ocorreu na OASL, quando o histórico da organização poderia ter sido utilizado para minimizar problemas. Afinal, uma das relevantes funções de uma organização política é conseguir acumular, no tempo, toda a experiência organizativa, evitando que se reinvente constantemente a roda, e fazendo com que os novos militantes possam usufruir da trajetória dos antigos.

No que diz respeito à OASL nota-se certa instabilidade organizacional que levou anos para se resolver. Não apenas no que diz respeito às atividades orgânicas, de secretariado etc. Mas, principalmente, nos trabalhos sociais, quando inúmeros esforços foram descontinuados ou não se desenvolveram da maneira mais adequada. Sem dúvida, houve um desperdício de recursos e de tempo considerável. Outro fator complicador foi certa ânsia de retomar todo o espaço perdido no curto prazo, que não raro terminou sobrecarregando e afastando militantes.

Aos poucos, foi-se percebendo que aquilo que se construía não era um projeto de curto prazo, mas algo que exigia uma duração maior. Como se passou a dizer, tratava-se de uma maratona, e não uma corrida de 100 metros. E, por isso, não adiantava sair correndo desesperadamente no início e esgotar-se depois de pouco tempo. De modo que certas medidas em relação à estabilidade e permanência dos quadros foram tomadas, incluindo aquelas relativas ao clima organizacional, contribuindo diretamente com os ganhos associados ao período de 2017-2020, em que a OASL vivenciou seu auge. Medidas que incluem o reforço ao ambiente fraterno, respeitoso, sem conflitos desnecessários, e também a valores como a modéstia e a humildade.

Independente das dificuldades, parece evidente que as duas gerações do especifismo paulista saíram de uma situação de quase inexistência de presença anarquista nos movimentos e lutas populares, e conseguiram modificar esse quadro. É possível dizer que, hoje, o anarquismo é mais conhecido e respeitado nesse campo, e tem conseguido exercer nele alguma influência. Não se trata, evidentemente, de uma força de primeira grandeza ou majoritária, mas de uma força política minoritária, que tem conseguido ganhar espaço e, em certos casos, lograr posições importantes e influenciar o rumo das coisas em sindicatos, movimentos sociais, protestos de rua e outras iniciativas.

Enfim, juntamente com o esforço que vem sendo empreendido por anarquistas de outras correntes, que têm se dedicado a iniciativas distintas, os especifistas têm reforçado uma difusão mais ampla do anarquismo para setores mais amplos da sociedade, facilitando sua atuação cotidiana e pavimentando o caminho para iniciativas futuras de maior envergadura.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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DOCUMENTÁRIOS E VÍDEOS

BUCANEIRO PRODUÇÕES. Solidariedade Campo Cidade [11m59s.]. Rio de Janeiro, 2008.

OASL. Uma Introdução ao Especifismo [01h34m59s]. São Paulo, 2014.

OLIVEIRA, Taiguara B. ELAOPA 2011 – Encontro Latino Americano de Organizações Populares Autônomas [3 vídeos]. São Paulo, 2011.

ENTREVISTAS

Militantes da CAB [Coordenação Anarquista Brasileira]: depoimentos [2012 e 2020]. Entrevistador: Felipe Corrêa. São Paulo, 2012/2020.

Militantes da FASP/OASL [Organização Anarquista Socialismo Libertário]: depoimentos [2020]. Entrevistador: Felipe Corrêa. São Paulo, 2020.

Militantes do FAO [Fórum do Anarquismo Organizado]: depoimentos [2012 e 2020]. Entrevistador: Felipe Corrêa. São Paulo, 2012/2020.

Militantes da FAU [Federação Anarquista Uruguaia]: depoimentos [2012 e 2020]. Entrevistador: Felipe Corrêa. São Paulo, 2012/2020.

Militantes da OSL-SP [Organização Socialista Libertária – São Paulo]: depoimentos [2012, 2019 e 2020]. Entrevistador: Felipe Corrêa. São Paulo, 2012/2019/2020.

ARQUIVOS (ATAS, DOCUMENTOS, MENSAGENS)

FASP (Federação Anarquista de São Paulo). Arquivos da FASP, 2009-2011.

NÚCLEO PRÓ-FASP. Arquivos do Núcleo Pró-FASP, 2008-2009.

OASL (Organização Anarquista Socialismo Libertário). Arquivos da OASL, 2011-2019.

OPA (Organização Popular Aymberê). Arquivos da OPA, 2009-2012.

* Felipe Corrêa é editor, pós-graduado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, mestrado pela Universidade de São Paulo (Mudança Social e Participação Política) e doutorado pela Universidade Estadual de Campinas (Ciências Sociais na Educação). Coordena o Instituto de Teoria e História Anarquista (ITHA).

** Lennon Oliveira Matos é bacharel em Arqueologia e Preservação Patrimonial (UNIVASF), mestre em Estudos Culturais (EACH-USP) e doutorando em Antropologia Social (FFLCH-USP).

1 O anarquismo especifista ou especifismo pode ser definido como uma corrente anarquista, surgida na América Latina, cujos aspectos centrais encontram-se na noção de organização em dois níveis distintos e complementares (dualismo organizacional): da organização específica anarquista (organização política, partido) e dos movimentos populares (sindicatos, movimentos sociais etc.). Trata-se de uma corrente organizacionista, que preconiza uma organização anarquista que opere com unidade teórica, ideológica, estratégica, tática, e também com responsabilidade coletiva. E que tenha condições de incidir eficazmente em sindicatos e movimentos sociais, promovendo um programa de construção do poder popular. Isso significa influenciar tais movimentos no sentido da articulação ampla e não ideologizada; do classismo e da combatividade; da autonomia e da independência de classe; da ação direta, da autogestão e do federalismo das lutas; da conciliação entre objetivos imediatos (reformas) e perspectiva revolucionária, entre movimentos de massa e formas de luta avançada. Para saber mais sobre o anarquismo, ver: Corrêa, 2015. Para saber mais sobre o especifismo, ver: Mechoso, 2015; FARJ, 2008. Na internet: Site da OASL (https://anarquismosp.wordpress.com), Site da CAB (http://cabanarquista.org), Site Anarkismo.net (http://anarkismo.net).

2 Essas fontes incluem: bibliografia e outros recursos, tais como livros, artigos, textos, vídeos e sites, acadêmicos e não acadêmicos; documentos públicos, produzidos pela corrente/organização anarquista analisada, e também por outros atores do meio libertário; várias entrevistas com militantes que fizeram e/ou fazem parte dos processos em questão, as quais permanecerão anônimas a pedido deles; arquivos internos, tais como atas, documentos e mensagens, cujo acesso nos foi facilitado graças à mencionada proximidade dos acontecimentos em questão.

3 Esta proposta foi formalizada no documento Anarquismo Social e Organização (FARJ, 2008), aprovado no I Congresso da FARJ, que aconteceu um pouco depois desse encontro e contou com delegação do núcleo Pró-FASP. Esse documento tornou-se uma referência central na formação da FASP.

4 Marco nesse processo foi a chamada “Carta dos 51”, publicada nos fins de 2011. Com ela, 51 militantes signatários abandonaram suas organizações (MST, MTD, Consulta Popular e Via Campesina), fazendo uma dura crítica da burocratização e do governismo por elas assumidos. Dentre eles, estavam interlocutores importantes da OASL, em São Paulo e outras cidades. A carta pode ser lida em: https://passapalavra.info/2011/11/48866/.

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